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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Duplo centenário (Messiaen - VIII, Elliot Carter - II)

 

 

 
Olivier Messiaen
Oiseaux Exotiques, Chronochromie, Et expecto ressurrectionem mortuorum
Elliot Carter
Tempo e Tempi, Réflexions, Asko Concerto, Three Occasions for Orchestra
Remix Ensemble, Orquestra Nacional do Porto
Stefan Asbury, Franck Ollu
Casa da Música, 12 e 13 de Dezembro
 
 
Olivier Messiaen nasceu a 10 de Dezembro de 1908, Elliot Carter um dia depois. Ao longo do ano, os respectivos centenários têm sido assinalados, compreensivelmente com maior incidência o do compositor francês. Não obsta a que este dia único de intervalo entre o nascimento de um e de outro sugeria também a possibilidade de uma celebração conjunta.
 
É um outro activo a assinalar à Casa da Música ter organizado um programa de concertos comemorativo deste “duplo centenário”, sendo que no caso o facto é assinalável mesmo no panorama internacional. Celebrar conjuntamente os dois compositores implica também as suas diferenças, muitas, e eventuais aproximações. Esse é um primeiro ponto. Um segundo diz concretamente respeito a estes concertos.
 
Uma das valias da Casa da Música, como amiúde tenho assinalado, é contar com a Orquestra Nacional do Porto e o Remix Ensemble como agrupamentos residentes. Já no programa “Música e Revolução” deste ano (o ciclo especial da Casa em torno da data do 25 de Abril, embora abordando latamente o conceito de “revolução), a que infelizmente não pude assistir, foram programados concertos tendo o Remix na 1ª parte e a ONP na 2ª, com “troca” de maestros, nesse caso mesmo os directores titulares de uma e outra formação, respectivamente Peter Rundel e Christopher König (em rigor na altura ainda maestro titular indigitado), ou seja Rundel, maestro do Remix, também dirigiu a ONP, e König, maestro da ONP, também dirigiu o Remix. Um mesmo procedimento, mas com maestros convidados, ainda que presenças regulares, foi seguido agora.
 
No concerto de dia 12, Asbury, que foi o primeiro director do Remix, dirigiu essa formação na 1ª parte com Oiseaux Exotiques de Messiaen e Tempo e Tempi e Réflexions de Carter e na 2ª parte Ollu dirigiu a ONP em Chronochromie, uma das mais importantes obras de Messiaen, finalmente em 1ª audição em Portugal. No concerto de dia 13, Ollu dirigiu o Remix em Asko Concerto de Carter* e na 2ª parte Asbury dirigiu a ONP em Three Occasions for Orchestra de Carter e Et expecto ressurrectionem mortuorum** de Messiaen.
 
Assim, além da eventual aproximação (e divergência) dos dois compositores, primeiro ponto, implicando também saber se o conjunto das obras de cada um apresentadas era representativo das respectivas personalidades musicais, isto é, a intencionalidade geral da proposta, o segundo ponto colocava questões de intencionalidades particulares no modo como, para realizar a proposta geral, se organizaram os quatro pares, dois compositores, dois concertos, dois maestros e duas formações. É preciso ter todos estes dados em conta para atender às particularidades do discurso crítico sobre este evento, sendo que não tem o menor sentido, num projecto tão carregado de intencionalidades, falar apenas de um ou de outro dos concertos, ou falar deles como eventos separados.
 
Parece-me indiscutível em primeiro lugar, que Messiaen teve uma presença muito mais representativa, pois que Oiseaux Exotiques, Chronochromie e Et expecto ressurrectionem mortuorum são três obras seguramente maiores, e pelo menos Chronochromie (senão Et expecto… também) uma das mais extraordinárias, e até de toda a música do século XX. Todavia também foi patente uma diferença de afinidades no tocante aos maestros.
 
Compara-se muitas vezes a Turangalîla-Symponie com a Sagração da Primavera de Stravinsky; o paralelo é no entanto erróneo. Se há obra de Messiaen que na sua extraordinária densidade se pode aproximar da de Stravinsky, essa é sim Chronochromie – e de resto também não lhe faltou o “escândalo” na estreia, que na tradição da narrativa da modernidade inaugurada justamente pela Sagração é parte integrante da “aura” de tão decisivas obras. Deduzir-se-á pelo exposto que esta obra portentosa não é nada fácil para uma orquestra e portanto também para quem dirige. Ollu optou pela segurança possível, mas ouvindo antes Oiseaux Exotiques como no dia seguinte Et expecto… ficou confirmado que Asbury é um maestro de muito maiores afinidades com Messiaen, deixando portanto a sensação que há a lamentar não ter sido ele a dirigir também Chronochromie – serão, compreensivelmente, dados inerentes a  uma programação exigente, em que havia de repartir as tarefas, mas o certo é também que a audição se ressentiu.
 
Extraordinária, apoteose desta dupla jornada, e um dos grandes momentos*** das celebrações de Messiaen em Portugal foi a interpretação de Et expecto ressurrectionem mortuorum. A obra exige meios de uma orquestra mas não é para orquestra, é sim para um alargado conjunto de quarenta instrumentistas de sopros e percussões metálicas. Asbury fez verdadeiramente a obra soar como vinda das profundezas (“Des profondeurs de l’abîme…”, 1º andamento) até à resplandecente glória – simplesmente inolvidável!
 
 
 
 
 
* Nessa 1º parte do 2º concerto foi também apresentada, em estreia, Quem chama?, obra da sueca Karin Rehnqvist, que neste ano do “Focus Nórdico” foi na Casa da Música “compositora associada” – obra a que ainda farei uma referência.
 
** Et expecto… tinha sido estreado em Portugal no passado dia 19 de Março pela Orquestra Metropolitana de Lisboa dirigida por Michael Zilm. Não tendo escrito na altura, ainda retomarei esse concerto, bem como a Turangalîla-Symphonie pela Orquestra de Baden-Baden dirigida por Sylvain Cambreling, a 29 de Janeiro, no Ciclo das Grandes Orquestras da Gulbenkian, numa rememoração deste “ano Messiaen”
 
*** O programa na Casa da Música incluiu também, além do Quator pour la fin du Temps, antes destes concertos, as Visions de L’Amen para dois pianos e L’Ascension, na versão para órgão, que não ouvi.