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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Ritual de vozes (Stockhausen - I)

 

No 1º aniversário da morte de Karlheinz Stockhausen
 
 
Stockhausen
Stimmung
Theatre of Voices, Paul Hillier
Harmonia Mundi
 
Stimmung é uma das mais fascinantes e encantatórias composições de Stockhausen.
 
A obra começou a ser escrita nos Estados Unidos, depois de uma viagem pelo México, Havai e Califórnia, em 1968. O facto está longe de ser menor. Por um lado, e ainda que a ambição de cosmogenia de Stockhausen estivesse já patente numa obra de pouco anterior, Hymnen (1966/67), que por sua vez tão influente seria nos grupo de rock “psicadélico” (Pink Floyd, etc.), é Stimmung que anuncia a viragem no sentido do misticismo, absorvendo influências extra-europeias – mesmo que, diferentemente de John Cage, Stockhausen tenha permanecido, ponto importante, um mestre-compositor, um demiurgo sim, mas no sentido da tradição europeia -, misticismo que se tornaria decisivo, não sem muito ganga “kitsch” também, no monumental ciclo Licht, encetado em 1977, com as suas sete “óperas”, uma para cada dia da semana, a que ainda se seguiria um outro ciclo,  Klang, para as 24 horas do dia.
 
Ainda que muitas das palavras escritas tivessem sido retidas pelo seu valor fonético (outras são nomes mágicas, e uma, a do “modelo” 28 – a obra engloba 51 “modelos” -  é uma prédica, “Langsamen…”), não é certamente por acaso que uma dessas seja “hippy” – 1968 na Califórnia , onde Stockhausen ensinou no Mills College, foi o momento de apogeu dos “flower people”. Mas, mais importante, e tenha sido caso de conhecimento directo ou não, Stimmung liga-se à tendência minimal que já despontava, depois do seminal In C de Terry Riley, de 1964 – e a obra constrói-se a partir de um si bemol, não de um “acorde de si bemol”, mas de 16 notas a partir dos harmónicos dessa outra, polar. Por sua vez Stimmung iria ter uma enorme influência nos sucessivos minimalistas (mesmo em Steve Reich, diga ele hoje o que disser) e muito em particular nos trabalho vocais de Robert Ashley e  de Meredith Monk – e se pensarmos no que uma Björk por sua vez deve a Meredith Monk, o lastro continua.
 
“Stimmung” é aliás uma palavra que significa quer “afinação”, quer “disposição” ou “humor” em sentido lato – além de evocar “Stimme”; voz. De certa maneira Stimmung no mais genérico sentido de “disposição” ou “humor”, de “l’air du temps”, é uma das mais representativas obras dos anos finais da década de 60. Mas num outro sentido, é uma obra trans-histórica.
 
Os seis cantores, três masculinos e três femininos, dispõem-se ao centro, sentados no chão com as pernas cruzadas, “à oriental”, com o público à volta, cada um deles com um microfone. Ocorre virem por sua vez para trás do público – Stimmung é uma cerimónia, um ritual, mas também uma prodigiosa invenção de uma nova vocalidade, como no maneirismo o tinham sido os madrigais de Gesualdo (e de Luzzaschi) e depois o foram os de Monteverdi – e era esse o reportório do grupo que solicitou a obra, o Collegium Vocale Köln. A obra dá campo à livre escolha dos intérpretes, é aleatória, e mesmo, prosseguindo os princípios de música intuitiva que Stockausen tinha já praticado em Aus den Sieben Tagen (imediatamente anterior, obra “libertária", de Maio de 68!), ainda que num quadro mais prescrito, apela às suas reacções imediatas, à reacção a um som, a uma vibração.
 
Cada interpretação de Stimmung é assim diferente – pelo menos, certamente, cada uma por intérpretes diferentes. Em Portugal, em Lisboa, houve duas realizações inolvidáveis: uma, em 1972, pelos criadores da obra, o Collegium Vocale Köln, no Instituto Alemão dos tempos áureos, dirigido por Curt Meyer-Claison, outra no Festival Música Viva em 2006, na Sala do Capítulo do Mosteiro dos Jerónimos, por estes mesmos e excelentes Theatre of Voices dirigidos por Paul Hillier (que será o maestro titular do novel Coro da Casa da Música).
 
A proliferação de gravações “live” está também a alterar alguns dados da escuta. Por mim, ironizando, costumo dizer que ainda terei de arranjar uma estante para discos e dvds em que “compartilho” da respiração de fundo, isto é, de concertos ou espectáculos de ópera em que estive presente. Mais latamente, a memória concreta suscita um suplemento de emoção na escuta.
 
Este caso é diferente – fatalmente, estou em crer, pelas características da obra. Reouvida agora, a versão (porque cabe falar em “versões” e não apenas em “interpretações”) do Theatre of Voices parece-me menos incisiva, de algum modo mais macia, que a dos Singcircle dirigidos por Gregory Rose, em que Paul Hillier aliás era um dos participantes (Hyperion). Mas porque cada versão é diferente, cada uma se justifica.
 
E o caso é também diferente de outras audições porque requer condições especiais, de preferência na penumbra, tomando os devidos cuidados (com os telefones etc.) para não haver interrupções

 

 

 

 

 

 

...a Karlheinz Stockhausen

 
 
A Karlheinz Stockhausen (22/08/28 – 05/12/07) devo um dos choques mais decisivos da minha vida, mesmo determinante: no princípio dos anos 70, a descoberta de Momente (61-64) tornou evidente que a música me interessava a sério, que era algo que eu queria estudar mais aprofundamente. Não se tratava, como até então, da regularidade de um convívio com o reportório clássico – foi a partir da música contemporânea, a partir dessa obra extraordinária, que se me reorganizaram as perspectivas e o desejo do aprofundamento.
 
Em Junho de 1972, num caso então ainda pouco frequente de “sintonização” com a actualidade da criação musical, Alfons e Aloys Konstarsky vieram à Gulbenkian interpretar Mantra para dois pianos (70), uma peça surpreendente porque no fundo construída numa perspectiva horizontal, de sequência no tempo, do que em termos tradicionais é “a melodia”.
 
Em retrospectiva, e sem prejuízo de até poder apreciar pontualmente algumas peças posteriores, penso que Mantra foi mesmo a derradeira obra decisiva de Stockhausen, antes da sua cosmogenia o fazer embarcar na desmesura do ciclo Licht/Luz, com sete obras correspondentes a cada um dos sete dias da semana (e da “Criação”), tendo embarcado mais recentemente num outro e mais “modesto” ciclo, Klang/Som, que iria corresponder às 24 horas do dia (Natürliche Dauern / Durações Naturais, para piano, nº 16-21 e 24, encomenda da Gulbenkian, tinha tido a 1ª audição absoluta no passado dia 17 de Julho, no concerto de encerramento das comemorações do 50º aniversário).
 
A ambição desmesurada do demiurgo de ultrapassar a Tetralogia de Wagner (uma qualquer tentativa de estabelecer esse paralelismo era coisa “interdita” de se lhe colocar), a adoração “xamânica” que suscitava, a começar pela tribo que em torno dele trabalhava e vivia, "derrapagens" como a inqualificável e depois a modos que "rectificada" proclamação de que o 11 de Setembro teria sido "a maior obra de arte de sempre", e – sejamos claros – a realização visual de “kitsch” das diversas peças e obras de Licht, por ele próprio concebida, tudo isso afinal tinha um terrível aspecto também trágico, o do artista que queria moldar o mundo à sua imagem, o que sendo especificamente o seu caso, não deixa – ou não deverá deixar – de suscitar uma reflexão mais ampla.
 
Mas isso também não desmente a invenção incrívelmente prodigiosa de quase 20 anos, de 1951 ( Kreuzpiel) a 1970 ( Mantra), a incessante aventura e a fertilidade dos horizontes abertos num percurso ímpar e de absoluta genialidade (sim, genialidade), do serialismo integral e da electrónica à espacialização, à “momente-form” na exploração das virtualidades dos momentos singulares ou à música intuitiva e a ritualização.
 
Peças como Kontra-Punkte, Zeitmasze, Gesang der Jünglinge, Kontakte, Gruppen, Carré, as Klavierstücke I-XI, Momente, Hymnen, Stimmung ou Mantra são magistrais, siderantes mesmo algumas delas. Poucos, mas muito poucos compositores, foram de um tal rasgo.
 
Tinha há pouco colocado em linha um texto em que se inscreve também o nome de Stockhausen quando soube da sua morte. Mas que discuta concepções de música contemporânea, que nesta página os primeiros textos de concreta crítica sejam de música contemporânea, tal como foram sobre música contemporânea as minhas primeiras críticas em jornal, toda essa inscrição axial decorre ainda do que antes do mais descobri com Stockhausen e com Momente.
 
Por todas as razões, pessoais e gerais, e não escamoteando a perplexidade perante o sistema adoratório que em torno de si Karlheinz Stockhausen ergueu, só posso reafirmar o reconhecimento grato por um ímpar descobridor dos universos sonoros.
 
Sim, reconhecido...