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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

São Carlos, o disparate anunciado - III

 

“Candida Höfer em Portugal”
 
 
 
Salvaguarde-se que, a abrir a temporada, em Setembro/Outubro, haverá o Siegfried, prosseguindo a encenação da Tetralogia de Wagner por Graham Vick – e, cabe notar, espera-se apenas que, como inicialmente previsto, O Anel se venha de facto a concluir em temporada futura com a representação integral sucessiva da Tetralogia, o que nunca sucedeu em nenhuma das vezes que foi encenada em São Carlos, espera-se, repito, que haja as devidas garantias.
 
Feita a ressalva, o panorama aproxima-se de um desastre generalizado e da maior incúria.
 
Sobre esta próxima temporada paira claramente a sombra do ex-secretário de Estado Mário Vieira de Carvalho, que de resto, em vários textos no “Público” e uma resposta ao actual ministro no “Expresso”, tem dados mostras suficientes de que não se dá por vencido, antes que continua a ser o ideólogo.
 
Acha ele, achou ele sempre, que em ópera se dá demasiada importância aos cantores?! Pronto, passou-se à prática: salvaguardado o Siegfried, repito, cantores de distinção não os há, excepto Elisabete de Matos em arriscada estreia no papel titular da Salomé.
 
Mas mais: sabe-se como o modelo que o ex-secretário de Estado achou frutífero foi o de Carlos Fragateiro no Teatro da Trindade, nomeando-o mesmo director do Teatro Nacional D. Maria, de resto tendo-se aquele mantido em funções no Trindade, em clara contravenção da exclusividade exigida por lei. Escrevi eu isso mesmo, e demitiu-se em seguida Fragateiro do Trindade, quando aí anunciou umas Bodas de Fígaro encenadas por Maria Emília Correia. Pois a conexão Vieira de Carvalho-Fragateiro-Dammann confirma-se agora com um Don Giovanni encenada pela mesma Maria Emília Correia. Lamento, por toda a consideração que tenho por ela, mas isto é puro disparate, além de revelador das linhas que se cosem.
 
Mas mais: ao senhor Christoph Dammann escapam os requisitos musicais para ser director de um teatro de ópera, e vou dar três exemplos.
 
Ponto 1) O aspecto mais catastrófico da sua gestão da temporada anterior foi a escolha de maestros. Agora já não há sequer a possível desculpa do pouco tempo disponível para escolhas e contratações até porque, satisfeito, Dammann resolve repetir.
 
Na Clemenza di Tito de Mozart houve aspectos infelizes na encenação de Joaquim Benite (os figurinos de Filipe Faísca, o “parti-pris” do estatismo do coro) mas também outros pertinentes (por exemplo, a opção pela monumentalidade). Lamentável sim, além de uma cantora que confundiu Vittelia com a Santuzza da Cavalleria Rusticana, foi a direcção musical de Johannes Start, totalmente privada da energia mozartiana. Pois o dito Start volta, e de novo para dirigir Mozart, e nada menos que o Don Giovanni.
 
Ponto 2) O senhor Dammann achou interessante retomar uma prática do século XVIII, com um intermezzo bufo interpolado numa opera seria. Esquece-se que os tempos de duração praticados eram muitíssimos mais longos e que, digamos, os “tempos de recepção” também eram outros.
 
Mas, vai daí, em Agrippina, a mais esplêndida ópera do período italiano de Haendel, vai ser interpolado Intermezzo, ópera encomendada a Nuno Côrte-Real, com libreto de José Luís Peixoto. Ora, não só isso obrigará a cortes ainda mais drástico na ópera de Haendel, como este tipo de encomenda de intermezzo só teria sentido se os respectivos autores dominassem os códigos dos géneros operáticos para com eles jogarem – e não há o menor indício que isso suceda com Peixoto e Côrte-Real.
 
Ponto 3) Para mais Agrippina requer quatro ou cinco grandes cantores; nem um só dos anunciados é de relevo. E pior: Dammann tem uma tal noção da interpretação historicamente informada que dispensa um agrupamento com instrumentos de época e põe a obra a ser executada pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, tal como aliás, num concerto, outra obra-prima barroca, o Te Deum de Charpentier.
 
 
 
Além de tudo o mais, há a dizer que a informação do director do teatro se revela escassa e parcial.
 
Anuncia-se finalmente um Estúdio de Ópera no São Carlos. Acho importante, gostaria de saber mais, e é uma das questões, tal como a da nefasta OPART EPE que deixo para próximos textos. Mas nesse espectáculo do Estúdio de Ópera, além do já citado The Telephone de Menotti encenado por Karoline Gruber, a tal que depois de Das Märchen pelos vistos aqui também tomou residência, há Comedy on The Bridge do compositor checo Bohuslav Martinu encenada por Paula Gomes Ribeiro. E a que propósito? Porque se desconsideram, por exemplo, os casos mais prometedores revelados nos dois cursos de encenação de ópera da Gulbenkian? Será porque Gomes Ribeiro integra o CESEM, o Centro de Estudos de Estética e Sociologia da Música do Prof. Vieira de Carvalho?
 
Não sabe o director de teatro das temporadas de outras instituições em Lisboa? Porquê celebrar o centenário de Messiaen com uma interpretação da Turangalîla-Symphonie quando já houve uma no Ciclo de Grandes Orquestras Mundiais da Gulbenkian este ano, e não faltam outras grandes obras do autor que era importante dar a ouvir? Porquê aceder ao capricho pessoal do presidente, director-geral e intendente de programação do CCB, António Mega Ferreira, que resolveu achar-se também decisor musical, e fazer de novo um Fidelio de Beethoven em versão de concerto?
 
 
Tudo isto demonstra, além de graves incúrias, desde logo do director Christoph Dammann, esta espécie de “domínios privados” em que transformaram as instituições culturais: são as opções de Mário Vieira de Carvalho ou os “contributos” de Fragateiro e Mega Ferreira. E é um disparate anunciado, e o plano inclinado do vazio de perspectivas no São Carlos.
 
 
(Como disse, deixarei para textos posteriores mais em concreto as questões do Estúdio de Ópera e da OPART)

São Carlos, o disparate anunciado - I

 

“Candida Höfer em Portugal”
 
 
 
Enunciar uma perspectiva acentuadamente crítica de uma temporada anunciada pode parecer exercício exorbitante, se não mesmo tendencioso. Se, contudo, eu disser que a próxima Temporada 2008-09 da Gulbenkian confirma níveis de excelência, e seleccionar alguns destaques de ainda mais especial expectativa de excelência (o que farei em breve), o facto será considerado conforme ao que se espera de um crítico. Como tal, e numa mesma ordem de razões, afigura-se-me legítimo e pertinente enunciar as razões pelas quais acho bastante problemático, mesmo lamentável, o horizonte que se desenha para o São Carlos.
 
Devo, é certo, fazer um “mea culpa” por não ter formalizado um balanço da temporada anterior, sendo que é a concreta experiência dessa que mais fundamenta muitas das reservas que enunciarei. Mas, sucedendo isso, também direi que sendo indesmentivelmente ora o São Carlos um caso de posicionamentos antagonistas, de Pinamonti “versus” Dammann, também tive, por exemplo, ocasião de fazer notar que as responsabilidades que já eram assacadas ao novo director, em concreto a desastrosa encenação do Rigoletto, eram ainda de facto uma aposta do anterior.
 
E pois que falo em concreto de Pinamonti e Dammann acrescento – até para enquadrar em devidos termos algo que me importa dizer – que já tive ocasião de recordar reacções havidas justamente quando da nomeação de Pinamonti. Como alguns se lembrarão, logo após a demissão de Manuel Maria Carrilho de ministro da Cultura, o director do São Carlos, Paulo Ferreira de Castro, apresentou também a sua demissão. Quando passado algum tempo o então novo ministro José Estêvão Sasportes anunciou Paolo Pinamonti como director do teatro o ex-ministro Carrilho teve um reflexo despeitado e reaccionário, considerando inconcebível que um estrangeiro viesse dirigir um teatro nacional português. Para além do des-gosto que tal reflexo me suscitou, não pude deixar de sorrir: tal reacção lembrou-me a “indignação” manifestada em França quando o alemão Rolf Liebermann foi convidado para director da Ópera de Paris – e depois, como se sabe, foi ele que a retirou do plano inclinado e lhe deu de novo brilho.
 
Acrescento ainda, e poderia invocar inúmeros exemplos nas minhas tomadas de posição ao longo dos anos, que sou fundamentalmente cosmopolita e alérgico a chauvinismos, e mais ainda em termos de arte em geral e de ópera em particular, sendo até que neste caso da ópera as diversas tradições nacionais só podem ser apreciadas em devidos termos no quadro de um cosmopolitismo genérico.
 
Isto tudo dito, entremos na matéria para desde logo dizer que Christoph Dammann, ex-director da Ópera de Colónia (de onde não saiu propriamente aureolado de prestígio) e (só) agora pleno directo artístico do Teatro Nacional de São Carlos, está a proceder a uma “deslocalizaçãso” de um hegemonismo inaceitável, sendo que das oito produções anunciadas para a nova temporada, três, todas as três “importadas”, provêm de teatros alemães, as óperas de Frankfurt, Leipzig e Colónia, e uma outra, nova, é uma co-produção com um teatro alemão de terceira ou quarta categoria, o de Erfurt.
 
Vamos então a alguns aspectos concretos.
 
Na temporada passada, a quase única produção de total responsabilidade de Dammann foram uns Contos de Hoffmann de Offenbach encenados por Christian van Götz, que foi aliás um dos mais vergonhosos espectáculos de ópera que alguma vez vi – e não é que tenha pouca experiência de desastrados espectáculos de ópera. Ora, na tradição dos teatros alemães, há duas óperas francesas que são presenças recorrentes, de resto porque ambas de inspiração literária alemã: Os Contos de Hoffmann e o Fausto de Gounod. Pois se Os Contos houve na temporada anterior, eis logo que para a próxima se anuncia…o Fausto.
 
Deve dizer-se que Dammann apresenta três encenadores alemães de notoriedade, Christof Loy, Peter Konwitschny e Michael Hampe. Digo desde já que por muitas razões desde logo dispensava o segundo e o terceiro, aliás por motivos opostos.
 
Michael Hampe foi o “encenador de serviço” do Festival de Salzburgo durante os anos finais da “era Karajan”. Depois disso, e por certo com razões de sobras, nunca mais lá o chamaram. Por mim, disse as vezes bastantes que o acho “o mais chato encenador do mundo” para não o repetir agora. Quanto aos outros dois, mas sobretudo Konwitschny, confesso, com indesmentível perversidade, que já antevejo com um sorriso irónico o que poderão vir a ser as reacções em São Carlos, com a crescente “conservadorização” do seu público, às encenações deles, às quais está usualmente aposta a expressão “skandal”, quase que em jeito de imperativo categórico, com tudo o que supõe também de gesto gratuito.